sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Irene Pós-Bandeira

A faxineira preta-preta-preta, a faxineira que limpava os quadros e as salas das Universidades.

É um martírio irônico (ou um mártire irônico) que a faxineira preta-preta limpando os quadros e o chão das salas das Universidades públicas, os lugares sagrados no Brasil, os lugares em que tudo se pode. Lugares em que tudo se seduz, lugares que te levariam às alturas. Lugares. Um lugar que mais sagrado não há, onde se tudo inventa, onde se fizeram e discutiram mil mundos melhores e mais justos que os melhores teóricos marxistas jamais puderam pensar, onde a vida de todos os cidadãos de uma sociedade está resolvida, onde todas as suas neuroses se encerram ou iniciam. Onde o super homem é inventado, e o homem demasiadamente humano, onde se pesa pondera e escreve mil vade mecuns e justiças. A faxineira preta-preta limpando os quadros e as salas. Vai limpando as justiças empoeiradas de giz no quadro.

E porque não dizer, a faxineira preta-preta que limpa os quadros e as salas, as latrinas, as retretes, as sentinas e os urinóis mictoriados deste lugar cheio de sexualidades, lugar foucaltiano, nietzscheano, beauvoiriano, lugar em que se discute que ninguém nasce mulher, mas pode se tornar mulher. Lugar aristotélico, kantiano, espinoziano, cheio de éticas para os bem-viveres, éticas cristãs, éticas budistas, xintoístas, reformistas, candomblistas, neo-paganistas, cheio de códigos morais.
A faxineira preta-preta vai limpando o quadro de giz.

E num Anel planetário na aula de Cosmologia traz pro lugar infinitos cosmos e a beleza de objetos astrofísicos desconhecidos, objetos sedutores como buracos negros que a tudo aprisionam, objetos dos quais nada escapa a sua vontade: também estes objetos são sugados pela força do apagador da faxineira preta-preta que vai apagando com calma.

A faxineira preta-preta suja de giz escrito: ninguém é sujeito da autonomia de ninguém.
A faxineira preta-preta e o sexo, o sexismo, o machismo, a revolução sexual. A faxineira preta-preta e o seu direito ao sexo, ao orgasmo, o seu direito ao sujeito sexual, à identidade de gênero, tudo isso é muito assegurado sim senhor nas aulas de ética contemporânea, de direito, senão o penal, o civil, senão o civil, o trabalhista, senão o trabalhista, o de família. À faxineira preta-preta, já lhe podem dizer: mas agora você tem o direito ao orgasmo, não é porque a bíblia dizia que não, agora já pode, já lhe é assegurado. A faxineira preta-preta apaga do quadro o direito ao orgasmo.

A faxineira preta-preta entra na aula das histórias gerais dos povos, nas aulas de economia marketing e administrações, entra na época dos palmares e sai na época da palmatória econômica, naquela que asseguram senão o direito à escravidão, o direito à subserviência a um sistema, já assegurado desde os mais mancebos segurares, direito social que alhures não sei aonde, nenhures lhe assegura o nada.

Tudo isto... fica pra trás quando a faxineira preta-preta-preta limpa o quadro, joga o lixo dos rascunhos na vala comum. Fica pra trás junto com tudo o que a faxineira preta-preta tem, uma cidadã de segunda classe, de terceira classe, ou quarta, de quinta categoria nesta Universidade e fora dela, uma invisível. Uma cidadã diferenciada no bairro de Higienópolis.
Era um lugar assim em que a faxineira preta-preta-preta tentava roubar. Roubar do destino dos desvalidados alguns minutos de desatenção sobre a desgraça de seu corpo. Roubar um pouco de sossego, de amplidão pros seio balançantas da vassoura enxarcada no chão, um pouco de descuido de um destino que se regozija com o sacrifício, em especial, daquele em que nada se pode tirar, nem acrescentar que a simples existência.

Porque era mulher. Preta. Feia. Descasada. Porque tivera dois abortos. Porque era pobre. Porque tinha o cabelo ruim. Porque não bastando tudo isto, os instintos básicos: a vida lhe negou todos os orgasmos, aqueles que nunca teve.

Para Guixo.

5 comentários:

  1. Estou muito honrado com o o belíssimo texto! O poema de Manuel Bandeira sempre foi um dos meus favoritos! Seria realmente interessante pensar o que seria aquele poema em prosa. Antes que eu me fizesse essa pergunta você se adiantou com uma produção linda. Infelizmente Irenes ainda precisam encontrar São Pedro para se deparar com um tratamento diferente, até hoje!
    Guixo

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  2. Fantástico texto, Rodrigo. Saudades de ti!

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  3. Brigado Adri! :)
    Saudades também, precisamos de um encontro! :)

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  4. Viraste um cronista de primeira linha. Faz tempo que não via um texto tão bom. Parabéns.

    Clovis

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  5. ehehehehehe...
    Muitíssimo obrigado senhor, mas é claro que eu tomo por exagero! :)
    ehehehe
    Abraço, e reafirmo que ainda temos que marcar um encontro... também assim vos apresento "Guixo" ehehehehe.
    Abç.

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