(Texto extraído do blog http://homofobiajaera.wordpress.com/ ).
Eu tinha pensado em escrever um texto sobre homofobia, mas, o que eu queria expressar, é exato como o que eu li num texto há pouco tempo. Que vem logo abaixo. (Eu de fato, convem a ressalva, não teria capacidade para um texto tão profundo e impecável, e por mais este motivo, reproduzo o texto do blog, de autoria de Adriano Mascarenhas (autoria do texto)).
Vamos fazer um pequeno exercício de memória discursiva. Se você tivesse que fazer uma lista dos grupos ou tipos de pessoas que mais sofrem preconceito em nossa sociedade, quem você listaria? Homossexuais, Travestis, Negros, Mulheres, Portadores de Necessidades Especiais, Nordestinos, Pobres. Ok, vamos parar nesses primeiros. Claro que poderíamos listar mais, mas a idéia é nos fixarmos nesse “top of mind”. São os tipos de preconceito mais discutidos atualmente, em programas de TV, blogs, fóruns, comunidades em redes sociais, etc. Essa maior exposição do assunto, pelo que tenho percebido, leva a uma maior conscientização da população, gradativamente, ao ponto de, pouco a pouco, esses preconceitos serem forçados a recuar, tornando-se socialmente condenáveis.
Cada um deles encontra-se em condições muito peculiares nesse processo, mas há uma noção clara de onde estamos e onde devemos chegar: o não preconceito. Vamos chamar de “noção clara” a consciência de que existe um grupo discriminado, um grupo discriminador, e uma situação que precisa ser mudada. A princípio, pode parecer simplório reduzir a questão dos preconceitos a isso, mas peço que detenham-se nessa idéia por um instante, por favor. Simplicidade é uma virtude que precisa entrar na moda porque suscita a clareza de pensamento necessária para nos livrarmos de algumas armadilhas conceituais.
Estou dizendo isso porque parece haver sempre movimentos contrários ou de desaceleração em relação a esse caminho a ser seguido rumo ao fim dos preconceitos. Um tititi, um ruído na comunicação, seguido por um monte de ecos de pensamentos reacionários, atrasados, e que ficam pondo em questão as demandas do movimento gay a todo tempo, como se nunca qualquer das nossas reinvindicações não pudesse simplesmente “ser” e tivesse que ficar se provando ad infinitum. E dá-lhe relativizações, ressalvas duvidosas, inversões, e todo tipo de falácia a serviço de tentativas de dizer que as coisas “não são bem assim” quando atacamos aqueles que nos oprimem. Analisando isso detalhadamente, temos o seguinte:
Quando falo em relativizações, falo da compassividade e condescendência que dizem coisas como “ah, isso é da cultura deles”, “eles foram educados para ter preconceito”, “vamos dar o braço a torcer para os conservadores nisso”, “temos que entender o lado deles”(essa é a que eu mais odeio). Se na “noção clara” que mencionei nós tínhamos, a princípio, um grupo discriminado e um grupo discriminador, a relativização é aquilo que faz o favor de colocar os dois lados numa situação de igualdade argumentativa, como se uma arbitragem neutra idealizada pudesse colocar ambos os “lados” numa balança, conferindo a eles o mesmo peso e observando passivamente uma dinâmica em que há um equilíbrio de verdade. Algo na linha tediosa do“todos têm a sua razão”, coisa que, pra mim, é fruto de uma preguiça de analisar isso racionalmente. Não há “equilíbrio de verdade” entre gays e homofóbicos. Os homofóbicos estão errados e ponto final. Essa frase dói nos olhos de alguém por um acaso? Você sente algum receio ou hesitação em colocar as coisas nesses termos? Por que um ponto final incomoda tanto? Será que não é porque você foi educado para não querer ter a razão em relação a eles?
Depois temos as ressalvas duvidosas. Essas são fáceis de identificar, mas difíceis de combater. Você vê isso quando está discutindo sobre preconceito e ouve a pérola “a homofobia tem que acabar, mas os gays também têm que se dar ao respeito”. Ah, lindo! Lá vamos nós fazer as tais ressalvas, dizendo que os gays devem ser respeitados desde que não sejam promíscuos, desde que não sejam afeminados, desde que se comportem, desde que se vistam de maneira socialmente ajustada, desde que sejam honestos e trabalhadores, desde que tenham caráter, desde que possam pagar um advogado pra isso… desde que não sejam… singulares… Isso é visivelmente virulento no caso do preconceito contra afeminados, e torna-se difícil de combater a partir do momento em que as pessoas dissimulam suas rejeições dentro do escudo das “preferências pessoais”: “Ah, eu não tenho nada contra afeminados, mas não gosto de caras que sejam”. Não digo que todos os que afirmam isso tenham preconceito, mas a auto-afirmação parece dar um grito abafado em frases assim: A pessoa afirma que não tem preconceito, apenas para convencer a si mesma disso, quando isso não é verdade e a ressalva deixa claro. Essa é uma ressalva necessária? Faz mesmo diferença pro mundo, para o tema “preconceito contra afeminados”, que as pessoas saibam que você não gosta de ir pra cama com eles? Para pensar. Pra mim, esse monte de ressalvas é uma maneira de nos permitir que sejamos diferentes, desde que não sejamos diferentes demais, desde que continuemos a não incomodar o status quo. Desnecessário dizer que isso também não produz mudança social alguma.
E por fim temos as inversões, que são a coisa mais baixa que vejo em debates dessa natureza. Voltando à “noção clara”, seria como se o grupo discriminado passasse a ser o discriminador, e vice-versa. Você já viu pessoas tentando desesperadamente dizer que há discriminação contra brancos, homens, héteros, paulistas, ricos? O grito aqui é de “Quero ser discriminado também!”. Jura que você não sente peninha desses grupos? Os contextos são parecidíssimos, não acham? O gay é discriminado por ser gay, e o hétero é discriminado por ser hétero, do mesmo jeitinho que nós. Pois bem, essas inversões surgem em debates sobre preconceito única e exclusivamente porque quem tem preconceito tem também uma tremenda incapacidade de lidar com esse fato e não aceita ser colocado no lugar de algoz que ocupa de fato. O mal tem que estar no objeto de ódio, num sabor bem parecido com o de textos de Olavo de Carvalho e Júlio Severo (que Cher me perdoe por citar nomes de tamanha irrelevância intelectual em um texto meu, mas eu precisava ilustrar). Inventa-se aí a “heterofobia”, a “ditadura gay”, a “misandria”, etc, etc, etc, blábláblá, zzzzz… Ok, eu não vou negar que, realmente, há pessoas dentro de grupos discriminados que acabam desenvolvendo um comportamento revanchista e demonstram reações tremendamente ignorantes contra quem não faz parte do grupo. Mas, será que estamos falando da mesma coisa? Uma coisa é um preconceito majoritariamente difundido pela sociedade inteira contra um grupo, e outra é um preconceito reativo por parte dessa minoria contra o grupo que a discrimina. Um é causa, o outro é consequência. O ciclo tem um começo, e não é na parte discriminada. As inversões não servem pra coisa alguma que não para imputar culpas adicionais a quem é discriminado. Circula-se pelo campo da busca de justificativas desesperadas de última hora para não ter que dar o braço a torcer.
Convém fechar esse texto com algumas reflexões sobre o que vem a ser um preconceito em nível ideológico, e porque é tão sem sentido encher a luta contra ele de entraves, hesitações, e desvios desnecessários e vazios de conteúdo. Sim, vazios porque esse elenco de “poréns” não significa coisa alguma, por mais popular que seja. A homofobia, o racismo, a misoginia, e as tantas outras formas de preconceito social não são frutos de um rompante de inspiração de uma pessoa preconceituosa. Essas coisas têm origem na história, em tensões culturais que já se arrastam há séculos e que têm origens complexas e heterogêneas sendo perpetuadas ao longo do tempo e do espaço na criação familiar, nas tradições, nas escolas e em todos os lugares onde o ser humano se forma. Querer forçar a barra dizendo que o “preconceito” contra o homem branco heterossexual de 20 a 30 anos de classe media é igual a isso é de uma insensibilidade e falta de consciência sem iguais. A pessoa que se presta a esse papel de pedra no sapato ignora todo o peso de uma cultura para ficar “caçando chifre em cabeça de cavalo”. Isso é armadilha conceitual. É encher a militância de problemas inexpressivos ou inexistentes só por birra e desejos reacionários ocultos.
A nossa guerra é contra o conservadorismo em todas as suas formas. Conservar é manter como está. A guerra é contra o passado, para enterrá-lo em seu lugar e permitir que um futuro de verdade nasça, não se constituindo apenas como um eterno arrastar de mentalidades atrasadas que se recusam a deitar e morrer, e ainda arranjam seus meios de se infiltrar entre nós. Será impossível conseguirmos isso com um ativismo vacilante, que hesita ao menor sinal de resistência e volta a balbuciar quando colocam armadilhas conceituais em sua frente. Autocrítica é algo muito bom, mas qual é o limite entre as críticas válidas que podemos fazer a nossas próprias atitudes e aquelas críticas mofadas oriundas da homofobia, que trazem junto vários preconceitos implícitos?
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