segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Poema que Morreu

Um assassinato.
Tudo indicava assim.
E o coitado do poema, estirado,
era coceira na curiosidade pública.

Chegou o delegado
- e cismado -
foi tecendo em pensamento
as inconstantes formas da dúvida.

Uma interrogação passeava ali.
Crescia e engordava
- proporcional -
a cada pessoa que parava
na pele da já recém formada
multidão.

Não demorou muito e apareceu o legista.
Ele era meio esquisito,
tinha tique nervoso
e coceira na vista.
Examinou o já lido poema
e constatou o consumado fato:
- Morrera de amor, não de infarto.
Suicídio? Assassinato?
Quem faria o fatídico ato?
- Quem ??? perguntava o delegado.

E com um ar sherloquiano
pegou o morto nas mãos.

Sob os olhos atentos da multidão
exclamou a primeira descoberta:
- Não era amador o assassino, era poeta !
“Poeta ?” Indagou a multidão incrédula.
- Poeta! Confirmou alisando o imeeeenso bigode.
Chegaram então os repórteres,
a lavadeira,
o bêbado ainda de porre,
a dona Julieta, o doutor Onofre,
e todos, do sul ao norte,
mastigavam a mesma pergunta:
“Um poeta, mas como é que pode ?”
- Simples! - Explicou o delegado...
A tristeza, num homem apaixonado,
dói além do sustentável.
No peito, abre um buraco.
Tanto insiste
que não resta escapatória,
com o dedo em riste,
atrás da porta,
persiste o crime.
A arma utilizada
não foi revólver,
não foi faca.
Foi um sentimento amargurado
delineado no papel
por uma caneta esferográfica.
Já a paixão - continua -,
foi a vítima,
de vez esquecida,
varrida,
morta.

Não é caso de polícia.
por aí morre um amor por dia,
é uma palavra prolixa, doída.
Dor nenhuma deve virar notícia,
fez bem o poeta em matar essa paixão.

E terminou largando o poema no chão.
Seguiu em frente, sumiu na multidão
que por sua vez se desfez
com a mesma rapidez
que se formou.

Mas do vazio que ficou - dilacerado,
permaneceu solitário
um adolescente
com os olhos molhados
e uma caneta na mão.
Em passos lentos, assimilados,
aproximou-se do poema
no chão largado
e guardou no bolso
a história do amor
que minutos antes havia escrito,
e por qualquer descuido
perdido...

Ricardo França

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Folhas Selvagens

As folhas lançadas nos montes
Nos montes levadas ao mar
Nos mares mergulho ao fundo
A fundo sem mais balançar

As folhas que dormem serestas
Descansam rugosas deitadas
Na aurora são secas e mesclas 
Terminam serenas, delgadas

As folhas que soltas das árvores
Torneiam em cores no ar 
Planando por novas veredas
Caminhos sem medo a vagar

Tais folhas que deixam floresta
As vê o menino a viajar
Marcando com sombra sua testa
Na frágil memória habitar

As folhas que ao longe chegaram
Findando o outono a serpear
Trespassam o inverno semente
Primavera a continuar.

São folhas que fulgem dolentes
No instante seguinte a apagar  
Respeitam o ciclo valentes
Do constante deixar passar.

(aos meus amigos, Kim e Douglas).

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Da Aids

E não era porque no "meio gay" (onde está o meio gay?) existia a promiscuidade e a AIDS se propagava pela homossexualidade. Era sim, porque a promiscuidade heterossexual, ou, a pratos limpos, o papel do machão, o papel do homem heterossexual que fica com váááááárias mulheres simplesmente não é definido como promiscuidade. Em questões de saúde pública a palavra promiscuidade é privilégio gay (porque não se a associam a homens e a mulheres). Mulheres que ficam com vários homens são putas, homens que ficam com várias mulheres são ou galinhas ou machões comedores-provedores (dependendo do meio) e homens que ficam com vários homens são promíscuos! (mulheres com várias mulheres então...).

E as mãe não cansam de dizer aos filhos recém-saídos do armário: "se cuida, porque nesse meio as coisas são assim, muita aids"...

Nada mais "clichê de inconsciente coletivo e televisão". Como todo preconceito (que também não é senão) um clichê do inconsciente coletivo, um desvio da realidade, uma fuga, para um achismo desmedido.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Humano

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela história, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas. De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miuçalhas se tivesse sabido aproveitar. A fraqueza alimenta a força, para que a força esmague a fraqueza.

José Saramago (Os Cadernos de Lanzarotte).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Erinnerung

Die Erinnerung der Fakten wurde verrückt. Sie hat die Zeit gefragt, Wo sind die Fakten, die Gedächtnis geworden würden, und verrücktet mit der Zeitantwort, Sie sind nicht: ich geschehe sie.

Tem Problemas? Nós Resolvemos!

Se você for homem branco, de classe média-alta, bonito, heterossexual, sem problemas físicos-psíquicos sua vida vai ser uma beleza!
Homem branco-bem-de-vida-heterossexual-sem-problemas só dá diarréia! Diarréia no pensamento. (Chamemo-lo "homem-bonzinho" daqui pra frente. Bonzinho, porque é contrário daquele que é o malvadinho, que tem o molde diferente).
E o sonho de uma casa ensolarada, com as crianças, a sua esposa magra, loira, alta, afeminada, com pão quentinho, margarina feliz, grama verdinha, carrão na garagem? 
Gonorréia?

Eu posso ver no futuro, quando a química e a biologia já vão ter resolvido os problemas tecnológicos delas, e você vai no mercado pra comprar não roupas, mas uma aparência e lembranças novas, que vai ter todas as variabilidades possíveis de homens-bonzinhos, dessa idéia hemorróida. Que mercado que o que. Você baixa uma pílula sinergética que vão chamar de margarina feliz direto da internet...Pensando bem, não vai mais ter internet, você fará um download direto através do seu corpo hologrâmico. Que é aquela estrutura química que entra onde os antigos chamavam de internet.
O inconsciente coletivo, vai ser a estatística média sobre todas as pílulas tomadas por todas as pessoas...

Eventualmente o homem-bonzinho (o do presente) acaba com alguns problemas: ele se droga, pra esquecer a vida, que é insuportável. Qual era o problema? O problema, era não ter problemas? Não, o problema era só a insuportabilidade que o homem-bonzinho sentia.

O engraçado pra não dizer o trágico é 'a gente dando o máximo de si' pra ser igual ao homem-bonzinho, pra chegar o mais perto que a gente pode dele, e ele querendo sair de si. Quer sair de si nada, ele só não aguenta a vida, mas sair de si é um exagero já. É porque todo mundo quer ser o homem-bonzinho, e o homem-bonzinho quer ser ele mesmo. Todo mundo quer parecer o homem-bonzinho, e o homem-bonzinho quer parecer ele mesmo.

O fato é que no "inconsciente coletivo" (se um fantasma desses existe, e ele existe, vide previsão futura da média estatística sobre as pílulas), o homem-bonzinho não sofre! (Isso se trata com muito Mozart, com muita Mitsuko Uchida fazendo caretas de dor de estômago enquanto arranca o Mozart do teclado no concerto 9). Ele não sofre, e nós sofremos, porque estamos cá um pouquinho aquém dele, e oras sempre estaremos.

Daí quando nós os malvadinhos damos o grande golpe: a desoberta ainda genial de que toda a tristeza de nossa vida é estar aquém dos bonzinhos! Veja-se o drama!

Claro, riquíssima a descoberta tem o seu tratamento: vamos parar com esta história de distâncias e desejar o desejo de agora, vamos lutar com todas as nossas forças internas por desejar a outra coisa.

E não é uma coisa engraçada esta? Nós não só queremos controlar tudo em nossa vida, mas eminentemente queremos controlar como vai ser o nosso desejo de felicidade, o nosso desejo de satisfação, e mais importante o nosso desejo de desejar. Não é engraçado que não nos basta apenas a gente querer alguma coisa, mas também querer querer?

Nós queremos querer, e violentamente mais, depois de descobrir. Ué se a gente quiser querer a coisa certa (aquela que sempre teremos é a coisa certa), eis tudo! Temos a solução pra nossos problemas! Nos resolvemos! Hay problemas? Los resolvemos!

O paradoxo dialético da ponta é não aceitar coisa alguma e nem querer mudar coisa nenhuma. Da ponta: ponta onde nos equilibramos.

É assim o nosso inconsciente coletivo. Todo cagado. E muito conscientemente ele sabe que sua função é estar todo cagado.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Quero ser Discriminado também!

(Texto extraído do blog http://homofobiajaera.wordpress.com/ ).

Eu tinha pensado em escrever um texto sobre homofobia, mas, o que eu queria expressar, é exato como o que eu li num texto há pouco tempo. Que vem logo abaixo. (Eu de fato, convem a ressalva, não teria capacidade para um texto tão profundo e impecável, e por mais este motivo, reproduzo o texto do blog, de autoria de Adriano Mascarenhas (autoria do texto)).

Vamos fazer um pequeno exercício de memória discursiva. Se você tivesse que fazer uma lista dos grupos ou tipos de pessoas que mais sofrem preconceito em nossa sociedade, quem você listaria? Homossexuais, Travestis, Negros, Mulheres, Portadores de Necessidades Especiais, Nordestinos, Pobres. Ok, vamos parar nesses primeiros. Claro que poderíamos listar mais, mas a idéia é nos fixarmos nesse “top of mind”. São os tipos de preconceito mais discutidos atualmente, em programas de TV, blogs, fóruns, comunidades em redes sociais, etc. Essa maior exposição do assunto, pelo que tenho percebido, leva a uma maior conscientização da população, gradativamente, ao ponto de, pouco a pouco, esses preconceitos serem forçados a recuar, tornando-se socialmente condenáveis.

Cada um deles encontra-se em condições muito peculiares nesse processo, mas há uma noção clara de onde estamos e onde devemos chegar: o não preconceito. Vamos chamar de “noção clara” a consciência de que existe um grupo discriminado, um grupo discriminador, e uma situação que precisa ser mudada. A princípio, pode parecer simplório reduzir a questão dos preconceitos a isso, mas peço que detenham-se nessa idéia por um instante, por favor. Simplicidade é uma virtude que precisa entrar na moda porque suscita a clareza de pensamento necessária para nos livrarmos de algumas armadilhas conceituais.

Estou dizendo isso porque parece haver sempre movimentos contrários ou de desaceleração em relação a esse caminho a ser seguido rumo ao fim dos preconceitos. Um tititi, um ruído na comunicação, seguido por um monte de ecos de pensamentos reacionários, atrasados, e que ficam pondo em questão as demandas do movimento gay a todo tempo, como se nunca qualquer das nossas reinvindicações não pudesse simplesmente “ser” e tivesse que ficar se provando ad infinitum. E dá-lhe relativizações, ressalvas duvidosas, inversões, e todo tipo de falácia a serviço de tentativas de dizer que as coisas “não são bem assim” quando atacamos aqueles que nos oprimem. Analisando isso detalhadamente, temos o seguinte:

Quando falo em relativizações, falo da compassividade e condescendência que dizem coisas como “ah, isso é da cultura deles”“eles foram educados para ter preconceito”“vamos dar o braço a torcer para os conservadores nisso”“temos que entender o lado deles”(essa é a que eu mais odeio). Se na “noção clara” que mencionei nós tínhamos, a princípio, um grupo discriminado e um grupo discriminador, a relativização é aquilo que faz o favor de colocar os dois lados numa situação de igualdade argumentativa, como se uma arbitragem neutra idealizada pudesse colocar ambos os “lados” numa balança, conferindo a eles o mesmo peso e observando passivamente uma dinâmica em que há um equilíbrio de verdade. Algo na linha tediosa do“todos têm a sua razão”, coisa que, pra mim, é fruto de uma preguiça de analisar isso racionalmente. Não há “equilíbrio de verdade” entre gays e homofóbicos. Os homofóbicos estão errados e ponto final. Essa frase dói nos olhos de alguém por um acaso? Você sente algum receio ou hesitação em colocar as coisas nesses termos? Por que um ponto final incomoda tanto? Será que não é porque você foi educado para não querer ter a razão em relação a eles?

Depois temos as ressalvas duvidosas. Essas são fáceis de identificar, mas difíceis de combater. Você vê isso quando está discutindo sobre preconceito e ouve a pérola “a homofobia tem que acabar, mas os gays também têm que se dar ao respeito”. Ah, lindo! Lá vamos nós fazer as tais ressalvas, dizendo que os gays devem ser respeitados desde que não sejam promíscuos, desde que não sejam afeminados, desde que se comportem, desde que se vistam de maneira socialmente ajustada, desde que sejam honestos e trabalhadores, desde que tenham caráter, desde que possam pagar um advogado pra isso… desde que não sejam… singulares… Isso é visivelmente virulento no caso do preconceito contra afeminados, e torna-se difícil de combater a partir do momento em que as pessoas dissimulam suas rejeições dentro do escudo das “preferências pessoais”: “Ah, eu não tenho nada contra afeminados, mas não gosto de caras que sejam”. Não digo que todos os que afirmam isso tenham preconceito, mas a auto-afirmação parece dar um grito abafado em frases assim: A pessoa afirma que não tem preconceito, apenas para convencer a si mesma disso, quando isso não é verdade e a ressalva deixa claro. Essa é uma ressalva necessária? Faz mesmo diferença pro mundo, para o tema “preconceito contra afeminados”, que as pessoas saibam que você não gosta de ir pra cama com eles? Para pensar. Pra mim, esse monte de ressalvas é uma maneira de nos permitir que sejamos diferentes, desde que não sejamos diferentes demais, desde que continuemos a não incomodar o status quo. Desnecessário dizer que isso também não produz mudança social alguma.

E por fim temos as inversões, que são a coisa mais baixa que vejo em debates dessa natureza. Voltando à “noção clara”, seria como se o grupo discriminado passasse a ser o discriminador, e vice-versa. Você já viu pessoas tentando desesperadamente dizer que há discriminação contra brancos, homens, héteros, paulistas, ricos? O grito aqui é de “Quero ser discriminado também!”. Jura que você não sente peninha desses grupos? Os contextos são parecidíssimos, não acham? O gay é discriminado por ser gay, e o hétero é discriminado por ser hétero, do mesmo jeitinho que nós. Pois bem, essas inversões surgem em debates sobre preconceito única e exclusivamente porque quem tem preconceito tem também uma tremenda incapacidade de lidar com esse fato e não aceita ser colocado no lugar de algoz que ocupa de fato. O mal tem que estar no objeto de ódio, num sabor bem parecido com o de textos de Olavo de Carvalho e Júlio Severo (que Cher me perdoe por citar nomes de tamanha irrelevância intelectual em um texto meu, mas eu precisava ilustrar). Inventa-se aí a “heterofobia”, a “ditadura gay”, a “misandria”, etc, etc, etc, blábláblá, zzzzz… Ok, eu não vou negar que, realmente, há pessoas dentro de grupos discriminados que acabam desenvolvendo um comportamento revanchista e demonstram reações tremendamente ignorantes contra quem não faz parte do grupo. Mas, será que estamos falando da mesma coisa? Uma coisa é um preconceito majoritariamente difundido pela sociedade inteira contra um grupo, e outra é um preconceito reativo por parte dessa minoria contra o grupo que a discrimina. Um é causa, o outro é consequência. O ciclo tem um começo, e não é na parte discriminada. As inversões não servem pra coisa alguma que não para imputar culpas adicionais a quem é discriminado. Circula-se pelo campo da busca de justificativas desesperadas de última hora para não ter que dar o braço a torcer.

Convém fechar esse texto com algumas reflexões sobre o que vem a ser um preconceito em nível ideológico, e porque é tão sem sentido encher a luta contra ele de entraves, hesitações, e desvios desnecessários e vazios de conteúdo. Sim, vazios porque esse elenco de “poréns” não significa coisa alguma, por mais popular que seja. A homofobia, o racismo, a misoginia, e as tantas outras formas de preconceito social não são frutos de um rompante de inspiração de uma pessoa preconceituosa. Essas coisas têm origem na história, em tensões culturais que já se arrastam há séculos e que têm origens complexas e heterogêneas sendo perpetuadas ao longo do tempo e do espaço na criação familiar, nas tradições, nas escolas e em todos os lugares onde o ser humano se forma. Querer forçar a barra dizendo que o “preconceito” contra o homem branco heterossexual de 20 a 30 anos de classe media é igual a isso é de uma insensibilidade e falta de consciência sem iguais. A pessoa que se presta a esse papel de pedra no sapato ignora todo o peso de uma cultura para ficar “caçando chifre em cabeça de cavalo”. Isso é armadilha conceitual. É encher a militância de problemas inexpressivos ou inexistentes só por birra e desejos reacionários ocultos.

A nossa guerra é contra o conservadorismo em todas as suas formas. Conservar é manter como está. A guerra é contra o passado, para enterrá-lo em seu lugar e permitir que um futuro de verdade nasça, não se constituindo apenas como um eterno arrastar de mentalidades atrasadas que se recusam a deitar e morrer, e ainda arranjam seus meios de se infiltrar entre nós. Será impossível conseguirmos isso com um ativismo vacilante, que hesita ao menor sinal de resistência e volta a balbuciar quando colocam armadilhas conceituais em sua frente. Autocrítica é algo muito bom, mas qual é o limite entre as críticas válidas que podemos fazer a nossas próprias atitudes e aquelas críticas mofadas oriundas da homofobia, que trazem junto vários preconceitos implícitos?


domingo, 16 de maio de 2010

Souvenir de Karlsruhe

(em exposição no "Mediensmuseum" de Karlsruhe, em fevereiro de 2009).

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A composição do mundo

A composição do mundo é uma coisa estranha, meio fluida, viscosa, que vai circulando na veia. Como se todas as coisas fossem compostas unicamente das palavras que estão ao seu redor, e das que as compõem.

Aqueles arranha-céus que a gente vê nas metrópoles são palavras na vertical... o cimento que usaram pra construir eles são palavras moídas, bem misturadas e aplicadas, as moléculas do cimento são palavras nervosas, colidindo, agitando, em plena neurose termodinâmica de seu ser, e finalmente, no mais micro, do micro, os elétrons, os quarks, os fótons, os glúons são palavras bipolares, palavras que são e não são,  estão e não estão, vão e não vão, palavras difusas mas fundamentais.

O mundo e todo o resto é uma dança contínua de representação de palavras. Claro. Nem todas são faladas, ou escritas, há também as que se escondem, as que não se dizem, que se olham, gesticulam, pulam e se misturam em completo silêncio. E que não subestimemos o poder destas também, afinal (o deus mais importante e poderoso é aquele que domina o silêncio e tem poder sobre a loucura e a sanidade).

domingo, 2 de maio de 2010

Extremos da Paixão

(Caio Fernando Abreu)

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante, lá vem o amor nos dilacerar de novo."

Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-
-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther
, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.

Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.