terça-feira, 30 de agosto de 2016

Mensalidade

Vida a prestações
de sensações retesadas
e tristezas hiperfinas
contadas em gotas
de palavras epiteliais
e economia de tempo

Há muito tempo que
O tempo vem preparando
o assassinato do tempo
que uma vez morto,
não deixa tempo
pra nada.

Risos reservados
tristezas permanentes
certezas deprimentes
corpos anestesiados
vida acumulando.

sábado, 27 de agosto de 2016

Impeachment

Este impeachment está sendo escrito linha por linha, capítulo por capítulo, palavra por palavra em cima do livro "O Processo" do Kafka. Pensando neste processo de impeachment e me lembrei. É impressionante a semelhança entre o livro e este julgamento. Não é só semelhante, são a mesma coisa.

Isto tudo, todo esse espetáculo, que grande farsa.

Vamos todos pra rua farsear junto com os mais altos cargos da nossa república, com os mais altos representantes, sentados em cima da sua bunda inerte. Vamos minha gente, eles já estão mortos.

É um bom capítulo do livro, a atmosfera psíquica é idêntica. A loucura é a mesma. No livro, o indivíduo não sabe sobre o que é julgado, sobre quais crimes cometeu, se é que de fato crimes cometeu. (Ele nasce já julgado de crimes que se quer sabe quais são... o tribunal de julgamento é somente pró-forma). Os examinadores lhe afirmam em tom monocórdio, "Não importa quais crimes você cometeu, não importa se quer se você sabe da lei, que ela exista, ou não, isso tudo é indiferente aos olhos de que, sim, a lei existe e o senhor cometeu crime". Mas que crime teria cometido.

Quase que não importa que ele tenha de fato cometido ou não crimes. O que importa na verdade é este clima psíquico de condenação. Se condena por intenções ("Doutora Janaína, mas isto não é crime", "Como não é crime? Os decretos representaram um inchaço do orçamento, o que foi usado com a INTENÇÃO eleitoreira de um ganhar a eleição, e não respeitaram a PREVISÃO do orçamento"... Intenção tanto quanto previsões não cumpridas viraram crimes). O que garante ao sujeito se ele tem ou não direito não é um papel, um livro (constituição), nem mesmo o bom-senso das pessoas letradas (vejam estes juízes meus senhores, sentados em suas cadeiras, vejam estes doutores e todas estas pretensões farsescas, que circo romano!).

O engraçado é Kafka ter escrito este livro na década de 1920, quase 100 anos atrás, com um apelo ao realismo fantástico, (quando alguns fatos inverossímeis são "inventados") e a partir das reações e dos desenvolvimentos subsequentes a estes "fatos inventados", vamos tecendo uma realidade (kafkiana): a atmosfera do absurdo. (Parece que a realidade beira ao absurdo, mas ninguém está ali pra nos dizer, até que algo acontece e o absurdo entra em ignição). Porque parece que a atmosfera do absurdo está ali sempre presente, pronta a se jogar no precipício, só esperando um empurrão...

A realidade sacolejando no anacronismo da história...

No final vejam meus amigos com aquela severa cadeira de Lewandowski se fazendo de sério, rei sobre todos os reis, de Renan Calheiros tentando manter uma compostura (?) e qual compostura um Senado tenha, a esta severa face de boa temperança, de bom equilíbrio, pedindo vênias, cinco minutos pra se recompor, cinco minutos pra recuperarmos nossa dignidade, cinco minutos, Dilma deve olhar ao superior ministro e dizer letra por letra, palavra por palavra, frase por frase como o (não)-herói do Processo de Kafka, Josef K., com a convicção de quem não precisa de escusas em um processo que já nasceu julgado: "todo este processo que o senhor conduz meu caro, Ilustríssimo senhor Lewandowski, condutor deste inimputável superior dentre todos os superiores tribunais desta nação, este processo todo é uma absoluta FARSA!"

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Face ou, a ressentida

Compartilhe curta goste comente clique
defina-se com duas letras neste espaço
diga-me feliz seu estardalhaço
As suas últimas respirações, publique

As mais lindas fotos duma felicidade
todos somos lindos e na tenra idade
fale ao mundo com coração de quem ama,
dois mil amigos na solidão de sua cama.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Essa ternura

"Não sei como me defender dessa ternura que cresce escondido e, de repente, salta para fora de mim, querendo atingir todo mundo. Tão inesperada quanto a vontade de ferir, e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade. Mas é mais frustrante. Sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro. Sempre o mesmo círculo vicioso: da solidão nasce a ternura, da ternura frustrada a agressão, e da agressividade torna a surgir a solidão. Todos os dias o ciclo se repete, às vezes com mais rapidez, outras mais lentamente. E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim."

Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Poema

Quando tinha 15, achei que eram só palavras.
Quando tinha 30 achei que tinha capturado sentido.
Aos 45 entendi que com 30 não tinha entendido nada.
Nos 60 achei que os sons eram bonitos se ditos alto.
Com 75 ainda chorava ao lembrar, mesmo esquecido.
Aos 80 então, colocaram sobre mim em pedra.
Até hoje lá está.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Organização

Esta organização excessiva, essa fragmentação elevada a último nível pode dar a impressão de que tudo na vida tem um propósito, de que nossas ações devem ser organizadas para gerar o máximo de propósitos possíveis. Há uma indelével certeza de que viver é maximizar as certezas.

O grande propósito é desfazer todos os propósitos. É se movimentar por entre o desconhecido absoluto, o absurdo, o inenarrável, com leveza e graciosidade. Ou gargalhando.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Tudo sobre a escola sem partido

Ai estes(as) protagonistas da escola sem partido querendo transformar um espaço público em algo tão insosso quanto eles(as) mesmos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Os ninguéns

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

(Eduardo Galeano).

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Forma

Os corpos não são para todos.
Existir o corpo não é para todos.
Há corpos que não existem
em sua invisibilidade.

Corpos que não se tem.
Escondidos. Penumbra.
Só se os vê com preza atitude de desprezo.
Luz sobre corpos, desprezo.

A luzes se apagam.
Corpos andróginos.
Corpos marcados.
Corpos coloridos.
Corpos gordos.
Corpos velhos.
Corpos caídos.
Corpos rugados.
Corpos mesclados.

Corpos geométricos de curvas decididas
não são pra todos.
Corpos de penumbra sem luzes incididas
não são pra todos.
Corpos nus em sua inexorabilidade
não são pra todos.

Pra dizer a verdade,
Os corpos para todos são bem poucos meu bem.
Corpos incomuns não são para todos
Corpos unidos potência
desnudos meio moucos...
Apaga-se a luz.

Todos os corpos que não são para todos,
inviabilizados não são pra todos,
invisibilizados não são pra todos,
desnaturalizados, desarmados,
desatados do natural
desamarrados de seu ser,
forçados a serem outros,
expressos em existência infame de inquestionável pureza,
corpos corretos encaixotados.

No final, o corpo cria a ilusão
de que o corpo é meu.
De que o corpo é teu.
De que o corpo é dele.
Tudo isto que nos pertence,
mas que um dia deixará de
e que não falemos neste dia,
oxalá longe esteja.

São contudo os corpos, coletivos
O desejo dos corpos é coletivo
A violência sobre os corpos nasce coletiva
E o que mais importa sobre os corpos é coletivo.

A individualidade dos corpos
no próprio corpo,
fala com poética ilibada benevolente,
o lirismo em profusão,
"meu corpo livre,
teu corpo livre,
o corpo dele livre."

Uma falsa impressão da liberdade
e estará sempre ausente
perdida, ao longe.

Gisele

Rostos deitados desconexos
Corpos nus espalmados entre sexos
Recoste num travesseiro desconhecido,
respiração leve.

Remodele suas esperanças meu boy
O corpo vai pesando odores
marcas 
já o dia vai começar, estranho.

Este som macio que te fez chorar
este que te faz lembrar
esqueça boy, esqueça tudo
com a taça de vinho na mão

A tristeza, mesmo ela quer te deixar
dá abertura, deixa ela ir, deixa ir
é a última, claudicante, aproveita
mas não esquece de sempre a lembrar

Que cor tem
que cheiro
onde mora
e o que mais importa: o que deseja.

Ou não, lembre muito bem
de esquecer este destino retorcido,
se o tempo retesado te endurece
se a amargura tece.

Porque esta réstia boy, esta terrível ternura
que te todo dia cresce no peito
que o abre à faca parecendo destino
Não te defendas dela.

Deixa que ela, ópera, dance,
que ela, grande incerteza, voe
sê bom com ela, pois que
pra além de silêncio espalhar-se-á.

Solidão

Como os poetas que cantavam a solidão, viveram solidão, ao longo de tempos, de tempos, de tempos pra lá ou pra cá. A solidão entregue fragmentada desde textos de Caio Fernando Abreu. Esta solidão nos resta saber dela.

A alma canta a solidão.
Vindo de um caminho de breu
na discórdia.
No âmago semente
letra de amargura.
Silêncio solidão em rogo.

Mas se solidão premente
se solidão desejo,
entre espaços microscópicos,
onipresente
me toca solidão em cura,
me abre solidão em fogo.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Caridade

"Queira Deus que nunca se extinga a caridade para que não venha a acabar-se a pobreza."
Saramago (O Ano da morte de Ricardo Reis).