sábado, 22 de outubro de 2011

Oh Mensch!

Oh Mensch! Oh Mensch,

gib acht! Was spricht die tiefe Mitternacht?
Ich schlief, ich schlief - aus tiefem Traum bin ich erwacht -
die Welt ist tief und tiefer als der Tag gedacht.

Oh Mensch! Tief!

Tief ist ihr Weh,
tiefer noch als Herzeleid.
Weh spricht: vergeh.
Doch alle Lust will Ewigkeit,
will tiefe, tiefe Ewigkeit!

Faz tempo que eu queria fazer uns pequenos comentários não especializados (e portanto completamente amadores, de todos os pontos de vista e dispensáveis) sobre esse trecho do Zaratrusta aproveitado pelo Mahler na terceira Sinfonia...

Não sei se se pode dizer que ele é um trecho síntese do pensamento nietzscheano (não se pode!), mas é certo que ele é muito significativo. Significativo pelas certezas a respeito do super homem, ou melhor, do homem que, vivendo pelo presente, vive pela sua própria dor e desgraça. Que, sabendo do abismo inexorável que se aproxima (além de todos os abismos da vida, a morte!), decide se jogar nele rindo e dançando.

Versos simples, leves e belíssimos. Vejamos.

Tenham cuidado oh homens com o que fala o "misterioso" meia-noite. (O meia-noite fala:)
"dormi, dormi, e de um sono profundo
fui acordado
onde o mundo era um abismo,
maior do que pelo dia dado."

Pois não está já aqui a negação da verdade? A negação da necessidade de determinar o que é o mundo (determinar a verdade), determiná-la tão só e unicamente como um produto de nosso medo de morrer? (E que pra me deixar mais pasmo, aparece como um sonho?)...

IRRA!

Dormindo o meia-noite descobre que: o mundo é muito maior do que o que o dia (razão) poderia teorizar (pensar)! Veja-se que metáfora belíssima! E é a noite (meia-noite) quem descobre isso, dormindo!

IRRA-2!

Então, o que o Mahler faz com este primeiro verso? Um misterioso lindíííííííssimo, que, se não é a própria representação de um sonho com revelações (ou revelação, na verdade, de que, o mundo é maior do que "a verdade" pode anunciar - maior do que o que se pode anunciar de fato), é pelo menos uma tentativa de se o expressar. (Acho que os alemães que tem uma tendência irritante a analisar tudo antes de sentir, dizendo qualquer coisa como "boa tentativa temos aqui caro Wilson!"). LINDO! (o primeiro trecho de Mahler é lindo, não os alemães).

Bom, aí continuamos com o segundo trecho, o desenlace, que é onde se situam a diferença entre a música e a poesia, entre puramente Nietzsche e a leitura mahleriana.

Oh homens, profunda é sua dor!
Êxtase, êxtase! Maior mesmo do que toda agonia!
A dor fala: deixa ir
e todo êxtase à Eternidade se queria!

O desenlace para Nietzsche é: não negue sua dor, não negue seus temores e o medo da vida, o medo da morte, homens, a dor maior do que toda agonia (um êxtase contrário?)...
Mas dentro de tudo isto, o próprio olhar da dor é: "se joga pintosaaaaaaaaaaa"! Se deixe ir na sua dor, carregue ela junto consigo, ao cair no inexorável precipício da vida (oras, você definitivamente acabará morto!), se jogue dançando, bailando, rindo!
Então, e só então: este é o êxtase a eternidade!
(Magina que exagero nietzscheano! Se eu tivesse vivo nestas alturas vendo ele escrever este último versinho, daria um tapinha na mão dele e ordenaria: corrija! Já!).

Mas ainda bem que tem o Mahler pra consertar tudo... que... no trecho da revelação nietzscheana, coloca uma grande interrogação! Pois no segundo trecho, Mahler acorda do sonho, e a música fica toda trabalhada na tensão! Uma tensão forte até o "tiefer noch als Herzeleid" (maior mesmo que a sua agonia!), sim, afinal, os versos estão a nos dizer, oras, meus pequenos (homens), profunda (incontável, absurda, insuportável) é a sua dor! (O pequenos eu adicionei porque lembrei do Nelson Rodrigues). Maior mesmo que a agonia! (Incalculável, veja-se o drama nietzscheano).

Mas o que é pra Nietzsche o desfecho e a resolução de todos os pobremas, deixem-se cair oh homens nesta dor, na dor da vida, carreguem-se com ela... é pra Mahler... uma PERGUNTA!
Uuuiiiii que dignidaaaadeeeeee!

Sim, meu bem, Mahler quando coloca a mão no trecho "Weh spricht: vergeh" que é a maior personificação do homem que não vive o platônico-socrático-cristianismo, faz isso perguntando, com grande dúvida: e é?

Deixar-se ir? Deixar-se cair nos pequenos abismos, e mesmo no abismo em direção à morte (porque afinal não temos outra saída) dançando, e rindo alto? E é? Em Mahler a certeza de Nietzsche continua como agonia...

Mas como Mahler quer terminar tudo com final feliz, a tensão se resolve quando o êxtase se eterniza (mas acho que faltou explicar qual é este êxtase mahleriano... que em Nietzsche era o "Weh spricht: vergeh").

Qual será o êxtase mahleriano?

(...)
(...)
(...)

Ai cansei dessa vida de pensar coisas inúteis sobre gente morte que ninguém lê ou se importa ou escuta e vou relaxar com a Waltraud Meier.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Irene Pós-Bandeira

A faxineira preta-preta-preta, a faxineira que limpava os quadros e as salas das Universidades.

É um martírio irônico (ou um mártire irônico) que a faxineira preta-preta limpando os quadros e o chão das salas das Universidades públicas, os lugares sagrados no Brasil, os lugares em que tudo se pode. Lugares em que tudo se seduz, lugares que te levariam às alturas. Lugares. Um lugar que mais sagrado não há, onde se tudo inventa, onde se fizeram e discutiram mil mundos melhores e mais justos que os melhores teóricos marxistas jamais puderam pensar, onde a vida de todos os cidadãos de uma sociedade está resolvida, onde todas as suas neuroses se encerram ou iniciam. Onde o super homem é inventado, e o homem demasiadamente humano, onde se pesa pondera e escreve mil vade mecuns e justiças. A faxineira preta-preta limpando os quadros e as salas. Vai limpando as justiças empoeiradas de giz no quadro.

E porque não dizer, a faxineira preta-preta que limpa os quadros e as salas, as latrinas, as retretes, as sentinas e os urinóis mictoriados deste lugar cheio de sexualidades, lugar foucaltiano, nietzscheano, beauvoiriano, lugar em que se discute que ninguém nasce mulher, mas pode se tornar mulher. Lugar aristotélico, kantiano, espinoziano, cheio de éticas para os bem-viveres, éticas cristãs, éticas budistas, xintoístas, reformistas, candomblistas, neo-paganistas, cheio de códigos morais.
A faxineira preta-preta vai limpando o quadro de giz.

E num Anel planetário na aula de Cosmologia traz pro lugar infinitos cosmos e a beleza de objetos astrofísicos desconhecidos, objetos sedutores como buracos negros que a tudo aprisionam, objetos dos quais nada escapa a sua vontade: também estes objetos são sugados pela força do apagador da faxineira preta-preta que vai apagando com calma.

A faxineira preta-preta suja de giz escrito: ninguém é sujeito da autonomia de ninguém.
A faxineira preta-preta e o sexo, o sexismo, o machismo, a revolução sexual. A faxineira preta-preta e o seu direito ao sexo, ao orgasmo, o seu direito ao sujeito sexual, à identidade de gênero, tudo isso é muito assegurado sim senhor nas aulas de ética contemporânea, de direito, senão o penal, o civil, senão o civil, o trabalhista, senão o trabalhista, o de família. À faxineira preta-preta, já lhe podem dizer: mas agora você tem o direito ao orgasmo, não é porque a bíblia dizia que não, agora já pode, já lhe é assegurado. A faxineira preta-preta apaga do quadro o direito ao orgasmo.

A faxineira preta-preta entra na aula das histórias gerais dos povos, nas aulas de economia marketing e administrações, entra na época dos palmares e sai na época da palmatória econômica, naquela que asseguram senão o direito à escravidão, o direito à subserviência a um sistema, já assegurado desde os mais mancebos segurares, direito social que alhures não sei aonde, nenhures lhe assegura o nada.

Tudo isto... fica pra trás quando a faxineira preta-preta-preta limpa o quadro, joga o lixo dos rascunhos na vala comum. Fica pra trás junto com tudo o que a faxineira preta-preta tem, uma cidadã de segunda classe, de terceira classe, ou quarta, de quinta categoria nesta Universidade e fora dela, uma invisível. Uma cidadã diferenciada no bairro de Higienópolis.
Era um lugar assim em que a faxineira preta-preta-preta tentava roubar. Roubar do destino dos desvalidados alguns minutos de desatenção sobre a desgraça de seu corpo. Roubar um pouco de sossego, de amplidão pros seio balançantas da vassoura enxarcada no chão, um pouco de descuido de um destino que se regozija com o sacrifício, em especial, daquele em que nada se pode tirar, nem acrescentar que a simples existência.

Porque era mulher. Preta. Feia. Descasada. Porque tivera dois abortos. Porque era pobre. Porque tinha o cabelo ruim. Porque não bastando tudo isto, os instintos básicos: a vida lhe negou todos os orgasmos, aqueles que nunca teve.

Para Guixo.