sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O ovo e a galinha.

A galinha põe o ovo. O ovo sai pro mundo. O pintinho perde seu mundo, o interior da galinha. Herda o lado de fora. O lado de fora é uma espécie de nada. Vazio. O ovo herda o vazio. Chamam isso de vida. Mas ainda não é isso. A galinha pôs o ovo e está ali sentada a chocá-lo. No vazio do Universo o ovo se encontra sozinho. Sozinho e aquecido. A galinha o aquece, com suas penugens, cheias de vida. Cheias de calor. Um segundo momento, do vazio ao calor. O pintinho dentro. Do ovo e do calor da galinha. O ovo aquecido, seu Universo. O pintinho finalmente choca. Um choque, o Universo se quebra em dois! (De fora a platéia ovaciona o "milagre da vida"). Se parte completamente. Um novo big-bang! O pintinho herda o vazio de novo. Num terceiro momento. O milagre da vida é herdar o vazio pela terceira vez.

A imagem do pintinho é o herdar de vazio. O milagre da vida se faz toda vez que o vazio é herdado. Há na vida, um final. (Não diga obviedades, reclama o revisor). Um fim que é a quebra do vazio que se herda. Quando não há mais nenhum vazio a ser herdado. É porque ela se transformou no próprio vazio e será herdada. Her-dada (à Terra?). (Há a Terra? Nesta crueza até aqui... nem-nada se criou... o que seria a Terra?). Completo ciclo de heranças e riquezas. Heranças e riquezas, dentro do vazio. A vida vai portanto se esvaziando.

Daqui até ali, só o que se espera é a morte. O pintinho não sabe disso, porque não chegará a pensar "estou vivo". (Não diga novas obviedades, me adverte desta vez o revisor). Mas a morte espreita enérgica a cada esquina de tempo. Sabe o momento exato de atacar. Ou nem se quer que isto saiba, apenas está por ali esperando um momentito descuidado. Que sabemos nós afinal sobre a distinta senhora? (nós? e há aqui algum "nós" introduzido a priori?...).

Calha que este pintinho chega a virar uma galinha. No meio do caminho entre uma coisa e outra há o processo de esquecimento do vazio. (E já aqui outra transgressão: onde é que se definiu o que é o esquecimento das cousas?). Vai da memória do pintinho vazando a lembrança do vazio. É uma que se poderia dizer que todos conhecem. Até então a morte espreitosa. Dona de formas e vestimentos escorregadios. De um só golpe na foice, e recupera a galinha, o pintinho, o ovo o vazio: recupera por quebrá-lo. Por se unir a ele.

Não somos nós mas a morte mesmo chega a dizer com um riso discreto: começou a vida começa quando se herda o vazio. Termina no momento exato em que ele se quebra... termina pois por se transformar no vazio que de início herdou.

Conto da Carrochinha 1

Era isso. Depois do começo intenso de namoro, depois da virada cultural juntos no show da Maria Rita, Dafne e Ricardo acabaram por descobrir que não tinham mais nada em comum. Nem todas aquelas pequenas coisas do início do namoro colocadas ali no chão entre os dois fariam sentido como o lugar  - comum pra ambos: nenhum dos dois estava ainda ali. Eram muito bons os discos do Roberto Carlos, ótimas as músicas da velha guarda, a Roberta Miranda, o Iê iê iê, que delícia os filmes do Tarantino ainda em VHS, e Nancy Sinatra cantando "My Baby Shot me Down". Tudo bom e memória longínqua. Nenhum dos dois estava mais ali. Nenhum deles ia se tornando aquilo. Era mais o que tinham se tornado. Que tinham se tornado, que não podia pra ser reescrito. Fechado pra reacontecer.

Sobrou: fazer uma paixão daquilo que se tinha passado e não do que poderia vir a ser. Sobrou o que não havia mais lá. Sobrou continuar até um fim - que veio breve.

Com o fim, à Dafne restou vender o abajour-luminária em formato de Anjo que Ricardo deu de presente, esmero de sua avó. Ricardo bebeu todas as garrafas de whisky que pode da marca blacklabel, igual àquela que ganhara no dia de 6 meses de namoro (e lá isso é data pra se comemorar? ia pensando enquanto se embebedava).

Depois do fim, exorcizaram todos os demônios, beberam toda a volúpia de um no outro pra que não ficasse nenhuma memória cruzada, nenhuma lembrança desautorizada, nenhuma sobra que não te quero lá.

Queriam extinguir o fato, extinguir a razão de um no outro e o existir desencontrado que fizeram juntos nestes poucos meses. Se tivessem máquina de apagar memória, usariam. Na falta, jogavam todos os demônios que tinham pra cima destas últimas lembranças. Fumar todos os cigarros. Beber todos os whiskies. Vender todas as coisas. Se desfazer. A ordem era imperativa: não deixar permanecer em si, sombra do outro.

Era como a morte ao contrário. Quando se morre, se morre e pronto - lembrou Dafne o trecho de memória, Olímpico de Jesus dizendo a Macabea, mas que bobagem este negócio de sentir falta de si quando morrer... Uma morte ao contrário: que se quer morrer e que não morre.

E vendiam sobretudo o maior dos medos. De que aquilo tudo, as sensações, os cheiros, as corporificações inconscientes, os lutos, as gargalhadas e orgasmos ficasse preso num corpo psíquico, um que nunca se pudesse vender.

Porque no final das contas, no lugar comum de si mesmos... não cabiam entre eles de tanta paixão frêmita sobre outro... de tanto ardor adolescente, e tanto desejo pelo orgânico do outro. Só a conclusão de que não tinham dali por diante absolutamente nada em comum em suas vidas, e de que faltaram horas-dias-semanas de inconsciente, não foi suficiente pra dispersar o encontro do quentinho de um no outro. E ninguém dos dois queria.

Queriam mesmo era vender esse quentinho. Se vingar dele.
O quentinho na verdade é que se vingava dos dois. Estando sempre por ali, ria e ria e tornava a se rir com gosto de tudo.