sábado, 27 de fevereiro de 2010

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Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.

(Manoel de Barros).

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Bandeirana 2

Era nestas horas que sentia a fluidez passando no corpo, toda letrante. Dos joelhos lhe saiam conjunções como uma artrose. O médico diagnosticou uma desfibrilação do coração em orações insubordinadas. A bunda e o tórax se inclinavam predicativos. O pneumotórax adverbalíssimo completou: trinta e três. O médico afirmativo,
O senhor tem a vida toda pela frente meu jovem.

O continuum.

Por que sim, nós vamos perder. Perder nossas coisas, nossa casa, nosso dinheiro, o seguro saúde, a própria saúde. Perder os amigos, os avós, os parentes, os pais, os namorados e por último (ou antes) tudo nos será tirado, vamos perder a vida.

Pra nós está reservado o que não se pôde reservar a nenhum dos outros seres que conhecemos. Nos reserva saber que estamos vivos e experimentar todas as possibilidades mesmo que absurdas, surreais e irreais. Experimentar todas as possibilidades as que nunca serão, as que já são as que são delírio e as reais.

E então, todas essas possibilidades, numa única respiração, nos serão tiradas.

sábado, 6 de fevereiro de 2010





Folhas escuras nodosas amarguradas
corpos cobertos de folhas, delgadas.
Vento sibila nas frinchas, irregulares
cena pastoral, amargos ares.

Os corpos a revolver
a golpes de facão trincados
sobre o chão, estirados
para o Sol apodrecer.

Não era genocídio se disse aqui,
ali, acolá, os senhores de chofer
ao anonimato dos genocidaire
De um refestelo de Tutsis.

Os dias se encontram rasgados,
o que se ponteou inopinado.
Ainda uma carta enviada,
mais uma sentença revelada,

A mão do pastor, a conclamar: 
Gostaríamos de informar 
que amanhã seremos mortos 
com nossas famílias.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Indizível

Extrapolar completamente a linguagem, para dizer tudo o que precisa ser dito, esquecer-se das relações dos conectores, de verbos que conectam com adjetivos, esquecer de ordem, de frase, de construção, esquecer de tudo o que! Só despejar o pensamento pronto no papel, como ele chega, sem um, sem dois, sem que, um pensamento puro, sem lapidação, diamantificado, sem presilhas e preconceitos de conjunções.

Assim e só assim é possível a comunicação.

Sair do Armário.

A neurose psicológica de sair do armário.
Entramos e saímos do armário todo dia, todas horas e todos os minutos, na hora da soda, do salgadinho, do olá como vai...
A neurose psicológica do sair do armário, e a neurose de que tudo é tão importante para se manter como está, e que força violenta pra manter tudo assim, dominadinho, certinho, nos seus devidos lugares. Que força virulenta, pra deixar as coisas assim! Tem um espinho afundado na pele, dói mexer nele, e dói tirar, sim, sempre dói, os dois né, deixar e mexer. Tirar o espinho da pele, então nem se fala é uma morte! Dói que a bicha se revolve toda em tripas! E nós continuamos deixando o espinho lá.

Entrar e sair do armário todo o dia é uma energia monstruosa, que chapa o coco. É a maior neurose psicológica que temos.

E o esforço pra não ser e parecer afeminado da comunidade das bichas-másculas-que-adoram-vestir-se-de-preconceitos-horríveis?

Afeminado é mácula! Que coisa horrorosa essa de se parecer com uma mulher, quem em nome de Deus quereria se parecer com uma criatura assim???

Ah não, mas já sei! É porque se as bichas-bichas, aquelas que não são másculas, aquelas que levam o apelido de bichas-bichas, porque uma vez bicha, tudo bem, (as bichas-másculas que o digam), mas duas vezes bicha, ninguém merece, enfim, aquelas que se se parecerem com mulheres, quem vai tomar o poder? Onde vai estar o poder??? Precisamos de um homem, másculo, reprodutor, viril, um chapolim colorado!

Ai que saudades de ser negro... como é que se podia ser negro no armário? Não pode né...
E estes negros sofreram os açoites e levaram a chifrada no cu dos brancos, que ninguém merece, e continuam ainda né. Mas aí não tem que gastar energia e nem ser neurótico com sair do armário todo o dia... não tem que levantar da cama e se preocupar

O armário já está lá... aberto...
Daí o negro levou cacetada né. 500 anos de cacetada, e continua levando... Se foram 500 anos de cacetada sem um armário, quantos mais, a gente (as bichas-másculas, e as bichas-bichas tá? amor e beijinho-beijinho só pra uma não vale) vai levar pra parar de apanhar?

Olha, o Nelson Rodrigues, se tivesse vivo ia dizer: meus queridos... aprendam a gostar de apanhar...

O Abismo e o Céu.


Nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - 
um poço fitando o céu.

(Fernando Pessoa).