sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Homem-Bomba

Em que pensa o homem-bomba
no exato momento de soltar o pino e estancar o tempo?

Em que pensa o homem-bomba
na hora imensa em que o sangue se adensa
e todos os sóis, e todos os poros, e todas as luas
projetam forças vorazes de gravitação
na explosiva nave de seu coração?

Em que veia-cava
o medo crava os seus tentáculos?

Em qual infinitésimo de segundo
a mão trêmula avança o pino
e vence a inércia do ser vivo
que deseja permanecer semente,
não de idéias, mas de carne viva?

Carlos Machado

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Momento Presente

Pessoas animadas conversando.
Um zumzumzum alegre.
Os garfos caem, as bandeijas se encontrando.
A brisa passa pelas árvores,
as árvores balançando.
A abóbora, laranja.
O menino bonito andando.
A garfadas, mastigando.
Um casal se beija.
ansiedade dos lábios passando.
Um latido lá fora,
o cachorro entrando.
Mais feijão, mais arroz, mais alface.
O braço na mão se curvando,
a mão enjeita no garfo,
o garfo entre a comida se apertando.

Tudo o que o momento presente é.
Reabsorvido em pensamento.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Fim do Concurso Chopin

Eis que o Concurso Chopin em Varsóvia chega ao fim. Realmente a nova geração de pianistas é indescrítivel.

Ganhou o concurso 'a russa' de nome Yulianna Avdeeva, uma pianista forte. Como disse no texto anterior, impetuosa. Frases longas. Ouvi algumas coisas com ela, como Valsas, lindas. Era uma das melhores, pra mim, mas me surpreendeu ela ter ganho.

Minha torcida era por Ingolf Wunder (que ficou com o segundo prêmio e com o de melhor Concerto), e Evgeny Bozhanov (que ficou em quarto lugar). Eu de fato acreditava piamente que o Bozhanov ganharia, mas na final, não gostei muito do Concerto como ele tocou. Pela russa que ganhou. E por Leonard Gilbert, que saiu do Concurso na segunda fase ainda.

Apesar de os pianistas que mais gostei não terem conseguido os primeiros prêmios (exceto a russa, que achava que ficaria em terceiro), fiquei feliz por suas boas colocações. Feliz pela conexão tão profunda que senti com Chopin, mas muito mais, com o toque de Chopin que estes pianistas deram.

Feliz também, por escutar Chopin neste período por horas e horas por dia e não enjoar, do contrário sentir vontade de mais.

E assim se encerra o ano do bicentenário do nascimenteo de Chopin, de maneira tão única, com um concurso e pianistas incríveis, absolutamente maduros.

Longa vida à música Chopiniana.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Chopin. 200 anos do nascimento.

200 anos do nascimento de Chopin.

Chopin pra mim é o maior poeta do piano. Não só pra mim, é certo (tomei emprestada essa idéia, por sinal). E neste ano comemoramos 200 anos de seu nascimento. 200 anos muito bem comemorados eu diria, porque a música chopianiana já foi estudada, reestudada, vista, revista, escutada, reescutada milhares de vezes. Por muitos pianistas famosos, por muitos pianistas que deixaram as suas impressões sobre o que a obra de Chopin quer significar.

Em especial neste ano, há mais motivos pra se comemorar. Está acontecendo, até o dia 20 de outubro, a 16ta edição do Concurso Chopin em Varsóvia que é talvez, o maior concurso de piano do mundo. Se não for o maior, deve ser o que reúne os melhores pianistas da nova geração...

Acho que temos bons motivos pra lembrar do concurso Chopin... Primeiro, pelo fato de um brasileiro já ter levado o segundo prêmio, na edição de 1965: Arthur Moreira Lima. Embora da contraversão (Arthur Moreira Lima é um péssimo pianista no hoje em dia), acho que não se pode negar a importância do fato... entre os melhores pianistas do mundo, ele já foi um dos melhores. E pra não dizer que neste exata edição, Martha Argerich, a Diva vulcânica, a bruxa mais poderosa, se saiu em primeiro... É... não ia dar pra Arthur M. L. (Gostaria de ser argentino, só pra poder dizer que a Martha é do meu país hehehe).

Aparte a nacionalismos, no Concurso Chopin foram 'descobertos' (para o mundo) nada menos que Ivo Pogorelich, Krystian Zimerman e Rafał Blechacz... Não sei nem o que comentar sobre eles. Pra mim são os pianistas que revolucionaram o toque chopiniano. Rafał é novo ainda (ganhou a edição do concurso em 2005), mas é inexplicável o seu toque. Foi por sinal o único a ganhar TODOS os 5 prêmios do Concurso.
Zimerman pra mim representa talvez o Chopin mais maduro. Controlado, profundo e com uma dinâmica impecável.
Finalmente, Pogorelich é uma invenção própria do que Chopin é... uma recriação maravilhosa da música chopiniana... uma recriação que ninguém nunca chegou a dizer, e que Pogorelich expressa no toque dele. É tão absolutemente íntima de Pogorelich. E diferente. Como se chegasse a ter a característica de todos os outros, mas em cada característica em um momento diferente. Chopin assim meio migrante. Meio cigano.

É preciso, contudo, indubitavelmente falar de Rubinstein, Horowitz e Richter. Mas eu infelizmente deles nada posso dizer, por não conhecer... (e é fato, que o conhecimento de Chopin de até agora se situa incompleto sem eles. Muitos diriam que na verdade deles é que emerge todo o Chopin que conhecemos hoje).

E neste ano a geração do concurso é incrível... (ainda bem que não sou só eu a achar isso... Martha Argerich e mais outros membros do júri comentaram que este concurso é bastante especial). Vi algumas performances da Bacarola, Baladas, Scherzi, Estudos, Polonaises, que me deixaram meio sem ar. Minha esperança desde já com Ingolf Wunder, um pianista austríaco absolutamente maduro. Um som intenso, apaixonado, a técnica toda resolvida (o que não corresponde a não errar nenhuma nota, ABSOLUTAMENTE). Com Evgheny Bozhanov e seu Chopin brilhantíssimo, enérgico, sutilíssimo, cheio de contrastes maravilhosos, todo colorido. Com Yulianna Avdeeva, um Chopin impetuoso, com todo orgulho, brilhante, polido, com frases loooongaaaaasss, lindíssimas. E finalmente com Leonard Gilbert, canadense, de Chopin introspectivo e cantabile lirííííííssimo.

É esperar pra ver. (Ficaria muito feliz de vê-los na final).

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Semana

semana
sem Ana.

sem Ana
se manda.

se emana
sem ma(is) nada.



domingo, 3 de outubro de 2010

Alguns Momentos - 2

Alguns momentos de grande espiritualidade. Momentos em que se descortina a realidade para o que realmente importa.

"Em todas as nossas buscas, a única coisa que torna o vazio suportável são os outros."
Carl Sagan (Contato).

"Una-se a tudo que encontrar com a meditação."
Urgyen Rinpoche.

Cada indivíduo é único. Cada ser é único e sozinho. Existe e mais nada. Dentro de cada indivíduo estão todos os indivíduos. Estão todos os seres e tudo que existe. E dessa identificação horizontal nasce a interdependência. Infinita.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Mais uma da Sétima Sinfonia.

Tenho nas mãos uma inépcia colossal.
É uma vontade dolorosa de expressar tudo que me passa. Todos os pensamentos. Todas as sensações. De que o mundo venha a saber tudo que tenho por dentro. Não me importa que não seja grande. Não me importa que seja tudo efêmero e passadio. Pra mim, um só pensamento de compaixão é capaz romper a linearidade do sofrimento. Sofrimento mesmo que é linear porque acontece de ciclos e ciclos que se revezam.

Mas me dôo nisso também porque... não é possível transmitir com palavras tudo isso... não é possível transmitir a dor... nem a compaixão que surge de se perceber todas as pessoas ou seres que sentem a mesma coisa, ou parecido, naquele mesmo momento, juntas gritando, ou nos segundos que passaram anterior àquele momento, nas horas, dias, anos. Que surge de perceber todas as pessoas que lutam em desespero qualquer que seja ele (mental, psíquico, físico, psicológico, se é que uns não se misturam com outros) pra se livrarem do sofrimento, as que estão em desespero desesperado, as que nem tanto. Também as que nem se apercebem, mas estão ali ansiosas e nem se sabe direito pra que. Nem elas sabem, nem nós sabemos.

Minimamente que seja o desespero da passagem das horas... De um bardô de vir a ser. Tudo que sempre vem a ser, e que deixa intacto as histórias do que poderia ter sido. Mas não foi. Um bardô tricotado, cuja sombra é a história das possibilidades... se delineia sobre o tempo que passa e ao redor lusco-fusco de resto... que não chega a acontecer.

E a intrasponibilidade...
Não é possível transmitir a alegria imensa de escutar a sétima Sinfonia de Beethoven. Isto está além da minha conjugação verbal. Porque todas as palavras juntas estão sempre aquém do que o que somos. Nem todas as frases possíveis de palavras combinadas de todas as línguas já acontecidas são capazes de significar uma sequência de acordes da Sonata Waldstein...

Talvez porque frases de palavras sem sentido e que cheguem diretamente a nós sem passar pela demanda de entender ou não, mas de apenas 'um arrepio', estas é que estão mais próximas do real. E que podem portanto significar alguma coisa preciosa. (Um contrasenso claro, o de só poder significar algo valioso quando se perder um pouco do sentido).

Fico completamente a mercê da imperfeição das formas de linguagem (pelo menos da minha)... Da não transliteração do real. Me encontro com o real cada vez que choro, e choro por muita coisa. Me encontro com o real neste exato instante fugidio, que deixou de ser, no instante em que escutando as violas, violinos, cellos e baixos marcando uma tristeza profunda, que mistura morbidez, sentimentos agudos, medo, dor de morrer assassinado, do segundo movimento sempre sereno (ah... a sétima Sinfonia...). Beethoven.
Então todas as palavras se dissolveram, sobrou só uma nuvem de limbos conceituais.

Infelizmente o encontro com o real não pode ser previsto. Claro que isto não é novo.

Citando Lacan em sua lucidez incisiva, diretíssima, felizes são os que são capazes de se encontrarem com o real e não ficarem presos a esta experiência, na tentativa frustrada de transliteração. Na prática, essa tentativa frustrada é a de aprisionar o real, ficar com ele.

Ou citando Isolda antes de morrer, "In des Weltatems, wehenden All, ertrinken, versinken, unbewußt, höchste Lust" (Na respiração do mundo, no todo que sopra, para se afogar, afundar, inconsciente, o êxtase supremo).

É fato que antes do encontro com o supremo desejo (ou com a suprema benção, inconsciente) no qual ela afunda, ela teve que gritar. Teve que enlouquecer sozinha, percebendo que estava chegando a loucura e sozinha "Freunde! Seht! Fühlt und seht ihr's nicht? Hör ich nur diese Weise, die so wundervoll und leise, Wonne klagend, alles sagend, mild versöhnend, aus ihm tönend, in mich dringet, auf sich schwinget, hold erhallend um mich klinget?" (Amigos! Vejam! Vocês não sentem, não vêem? Sou a única a ouvir, o que tão doce e maravilhoso, lamento encantado, que diz tudo, suave bonança, que ressoa dele, me atravessa ecoando abençoada, e soa ao meu redor?). Que o coração corajoso do Tristão teve que lhe atravessar "Wie das Herz ihm muttig schwillt, voll und hehr im Busen ihm quillt".

Depois de tudo isso, e só depois "höchste Lust" (êxtase supremo). E cai Waltraud Meier, a Isolda.
Soam-se os últimos acordes, harpa, violinos e sopros, o pano fecha. Brava.

Morangos Imaginários




O varal caía.
Caía, dormia, dormia.

Noite cálida. Gélida.
Dormente no pescoço. Torcida.
Goooooooollllllllllllll
from thermodynamics

Imperativo no singular.
acht auf, acht auf.
Óculos miopíssimos.
Era um tal astigmatismo de pleura.
Melodia.

Quem sou eu atualizado?
agnus dei de mail, plim
Umidificador na promoção,
álbum por ano.

Vector-type perturbation
é o erro de algo perdido no meio.
alemão, porque não?
ifort mqnsch.f ./a.out

Igo, faltou luz e o computador desligou.
Assinado: Pai.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Índice


O essencial incorruptível, inigualável, inquebrantável, invísivel, imaculável, incomunicável, inexorável permanece apenas. Ao essencial não se alcança.

Index cristão contra demônios, bruxas e salamandras.

Não quero chegar lá.
Não quero fazer diferença.
Não quero ser único.
Não quero ser alguém na vida.
(Poderia ser alguém da vida).
Não quero me encontrar.
Não quero ser alguém mais que ser mais alguém.
Não quero me tornar melhor.
(Nunca fui melhor do que o que sempre fui.
Nunca serei melhor do que o que sou.
E nunca seria melhor do que o que apenas sempre pude ser.)
Não quero céu que é só pra nós.
Não quero achar.
Não quero desejos obedientes.
(que consiga pelo menos o desejo ser,
calor e doença que não se possa ver
imagem desvirada deu(m) meu eu,
que não deixou pra depois de enlouquecer,
a vida que real só como escrita correu)
Não quero cotas de tapas nas costas.
Não quero poder que não é orgânico.
Não quero a chave de casa.
Não quero entrar.
Não quero exausto de quereres.

Apenas estou por ali. Só quero é, deixem queimar no meu enterro. Uma fogueira pra iluminar, é isto.

Tenho muito sangue andando por aí nas minhas veias.

Romeu e eu

(conto dialético e, ipso facto, poema romântico) [1977]

Eu quero brincar com você.
Papai não deixa.
O Diretor proíbe.
A Esquerda se opõe.

Você me chama
e eu morro de vontade.
Papai me ameaça.
O Diretor me intima.
A Esquerda me aterroriza.

Saio escondido,
procuro por você,
mas eles me acham.
Papai me bate.
O Diretor me põe de castigo.
A Esquerda atenta contra mim.

Fico esperando,
você me procura,
nos encontramos no escuro,
nos pegam em flagrante.
Papai me expulsa.
O Diretor me interna.
A Esquerda me seqüestra.

Escapo e sobrevivo,
mas você não está livre.
É filho de seu Papai.
Disciplinado ao seu Diretor.
Prosélito da sua Esquerda.

Vivo solitário, você prisioneiro,
e não podemos brincar.
Castram nossa infância
porque você é igual a mim,
sua vontade igual à minha,
mas nos fazem diferentes.

Glauco Mattoso

domingo, 5 de setembro de 2010

Ganas nas mãos.

Tenho ganas nas mãos, tenho ganas nas mãos.


Tenho ganas nas mãos,

ganas de sangue correndo

vermelhas arfantes ardendo


Tenho ganas nas mãos

ganas de novas estradas

sinuosas curvas molhadas


Tenho ganas nas mãos,

ganas do tempo passado,

furiosa corrente movendo...


Tenho ganas nas mãos,

ganas e uma guerra pra dentro

me mudam de fogo por vento


Tenho ganas nas mãos,

ganas me estrangulando a vida

de mortos desmisturando vivos


Tenho ganas nas mãos,

ganas que cunham palavras

juntas desfilam derramadas


Tenho ganas nas mãos,

ganas que estraçalham a pele

juncam feridas a pó


Tenho ganas nas mãos,

ganas de ir pra casa,

pra me escrever de solidão


Tenho ganas nas mãos,

ganas de amores mal-resolvidos

ganas de sofrer enlouquecido


Tenho ganas nas mãos

ganas de um cheiro de chuva

ganas que são só uma... esperança.


segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mozart, Mozart, Mozart

Mozart, Mozart. Meu tudo, minha vida, minhas melhores sensações, meu eu de abismo: Mozart é ollhar pra dentro no abismo escuro e se jogar caindo de risada e bailando com gosto.

Brindemos à música de Mozart, sem o que tudo estaria perdido, os dias seriam trevas.
Brindemos a música de Mozart, que ela transcenda todos os próximos milênios.

Mozart, Mozart, Mozart. Forever Mozart.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O real oral

De, deu, Deve

Devir, de vir, desvir, deve vir, dever vir, de viver. desviver,

desviuvar, desviar ver, desviar a ver, desvirar a ver, desvirar a Vera,

desvirar a Pedra, desvirar a vereda, desvirar a verdade.


CONCRETO.ABSTRATO.CONCRETO.ABSTRATO.

CONCRETO.ABSTRATO.CON-CRETO.AB-STRATO.


Um, dois, três, quatro, rimas, palavras,

ajuntamentos, substantivos, abnominal,

gramaticías, poemas, livros, verbandeids,

línguas, musculatória, cronormal.


Gonorréico.

Compaixão

Talvez a compaixão seja pois, desistir de tudo. Significando: deixar as idéias que se tem como verdades as mais profundas, suspensas. Desistir delas. Pairar.

Há um ponto em que o mundo das idéias além de imaterial é intangível e sobretudo incomunicável. Pois sendo incomunicável reside na compaixão, desistir de tudo. Ipso facto: silenciar quando não se pode comunicar.

Essencialmente a mais pungente das desistências é a de consertar o mundo. Porque consertar o mundo é sempre criá-lo à imagem do sujeito que o conserta. Tirania, que destrói.

É custoso e temerário desistir. Custoso porque não se pode medir o esforço. Temerário porque exige coragem além de qualquer outra ação. E mais sumariamente, porque se deve desistir, não senão (e absolutamente apenas) no momento certo.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre Saramago

Saramago morre. Morre e já deixa a vida.

Uma tristeza enorme me acompanha no funeral de José, o Saramago, o escritor mais humano do último século, que lutou e usou de toda a sua genialidade, de toda clareza intelectual que possuía contra o totalitarismo, contra o fanatismo, contra a miserabilidade, contra o mal do espírito que não cabe no bolso, contra o assassinato das consciências individuais.

Sinto-me como um pedaço arrancado do peito. Disse Fernando Meirelles que o mundo ficou mais burro e mais cego. 

Contudo, muito mais grave que isso, o mundo ficou mais selvagem, menos humano, menos reflexivo e mais propenso ao autoritarismo. Autoritarismo, genético, este que Saramago sempre escancarou nos seus livros a dizer: toma cuidado, assim é que somos.

É uma tristeza imensa continuar no mundo sem Saramago, Como se uma consciência poderosa e grandiosa, uma consciência sutil e sensível se apagou de repente. Dói sim, bastante.

Despeço-me dele, e fico órfão, já que Clarice e Caio Fernando há muito não estão por aqui, com um trecho comovente do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" (cuidado, trecho do final do livro, não recomendado para os que não leram ainda), como muitos outros em todos os livros que li dele. 

"(...)Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando 

de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par 

em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, 

e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o 

meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. 

Então Jesus compreendeu que viera trazido ao 

engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua 

vida fora traçada para morrer assim desde o princípio 

dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue 

e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar 

toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, 

Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que 

fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava 

em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros 

e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as 

perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda 

havia nele um resto de vida quando sentiu que uma 

esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, 

e então, olhando para baixo, deu por um homem 

que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já 

não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde 

o seu sangue gotejava."



sábado, 12 de junho de 2010

Epifania do Amor

Eu nunca vou te abandonar.
Eu nunca vou     abandonar.
Eu nunca            abandonar.
     nunca             abandonar.
                           abandonar.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Poema que Morreu

Um assassinato.
Tudo indicava assim.
E o coitado do poema, estirado,
era coceira na curiosidade pública.

Chegou o delegado
- e cismado -
foi tecendo em pensamento
as inconstantes formas da dúvida.

Uma interrogação passeava ali.
Crescia e engordava
- proporcional -
a cada pessoa que parava
na pele da já recém formada
multidão.

Não demorou muito e apareceu o legista.
Ele era meio esquisito,
tinha tique nervoso
e coceira na vista.
Examinou o já lido poema
e constatou o consumado fato:
- Morrera de amor, não de infarto.
Suicídio? Assassinato?
Quem faria o fatídico ato?
- Quem ??? perguntava o delegado.

E com um ar sherloquiano
pegou o morto nas mãos.

Sob os olhos atentos da multidão
exclamou a primeira descoberta:
- Não era amador o assassino, era poeta !
“Poeta ?” Indagou a multidão incrédula.
- Poeta! Confirmou alisando o imeeeenso bigode.
Chegaram então os repórteres,
a lavadeira,
o bêbado ainda de porre,
a dona Julieta, o doutor Onofre,
e todos, do sul ao norte,
mastigavam a mesma pergunta:
“Um poeta, mas como é que pode ?”
- Simples! - Explicou o delegado...
A tristeza, num homem apaixonado,
dói além do sustentável.
No peito, abre um buraco.
Tanto insiste
que não resta escapatória,
com o dedo em riste,
atrás da porta,
persiste o crime.
A arma utilizada
não foi revólver,
não foi faca.
Foi um sentimento amargurado
delineado no papel
por uma caneta esferográfica.
Já a paixão - continua -,
foi a vítima,
de vez esquecida,
varrida,
morta.

Não é caso de polícia.
por aí morre um amor por dia,
é uma palavra prolixa, doída.
Dor nenhuma deve virar notícia,
fez bem o poeta em matar essa paixão.

E terminou largando o poema no chão.
Seguiu em frente, sumiu na multidão
que por sua vez se desfez
com a mesma rapidez
que se formou.

Mas do vazio que ficou - dilacerado,
permaneceu solitário
um adolescente
com os olhos molhados
e uma caneta na mão.
Em passos lentos, assimilados,
aproximou-se do poema
no chão largado
e guardou no bolso
a história do amor
que minutos antes havia escrito,
e por qualquer descuido
perdido...

Ricardo França

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Folhas Selvagens

As folhas lançadas nos montes
Nos montes levadas ao mar
Nos mares mergulho ao fundo
A fundo sem mais balançar

As folhas que dormem serestas
Descansam rugosas deitadas
Na aurora são secas e mesclas 
Terminam serenas, delgadas

As folhas que soltas das árvores
Torneiam em cores no ar 
Planando por novas veredas
Caminhos sem medo a vagar

Tais folhas que deixam floresta
As vê o menino a viajar
Marcando com sombra sua testa
Na frágil memória habitar

As folhas que ao longe chegaram
Findando o outono a serpear
Trespassam o inverno semente
Primavera a continuar.

São folhas que fulgem dolentes
No instante seguinte a apagar  
Respeitam o ciclo valentes
Do constante deixar passar.

(aos meus amigos, Kim e Douglas).

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Da Aids

E não era porque no "meio gay" (onde está o meio gay?) existia a promiscuidade e a AIDS se propagava pela homossexualidade. Era sim, porque a promiscuidade heterossexual, ou, a pratos limpos, o papel do machão, o papel do homem heterossexual que fica com váááááárias mulheres simplesmente não é definido como promiscuidade. Em questões de saúde pública a palavra promiscuidade é privilégio gay (porque não se a associam a homens e a mulheres). Mulheres que ficam com vários homens são putas, homens que ficam com várias mulheres são ou galinhas ou machões comedores-provedores (dependendo do meio) e homens que ficam com vários homens são promíscuos! (mulheres com várias mulheres então...).

E as mãe não cansam de dizer aos filhos recém-saídos do armário: "se cuida, porque nesse meio as coisas são assim, muita aids"...

Nada mais "clichê de inconsciente coletivo e televisão". Como todo preconceito (que também não é senão) um clichê do inconsciente coletivo, um desvio da realidade, uma fuga, para um achismo desmedido.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Humano

O desbarato mais absurdo não é o dos bens de consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela história, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas. De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miuçalhas se tivesse sabido aproveitar. A fraqueza alimenta a força, para que a força esmague a fraqueza.

José Saramago (Os Cadernos de Lanzarotte).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Erinnerung

Die Erinnerung der Fakten wurde verrückt. Sie hat die Zeit gefragt, Wo sind die Fakten, die Gedächtnis geworden würden, und verrücktet mit der Zeitantwort, Sie sind nicht: ich geschehe sie.

Tem Problemas? Nós Resolvemos!

Se você for homem branco, de classe média-alta, bonito, heterossexual, sem problemas físicos-psíquicos sua vida vai ser uma beleza!
Homem branco-bem-de-vida-heterossexual-sem-problemas só dá diarréia! Diarréia no pensamento. (Chamemo-lo "homem-bonzinho" daqui pra frente. Bonzinho, porque é contrário daquele que é o malvadinho, que tem o molde diferente).
E o sonho de uma casa ensolarada, com as crianças, a sua esposa magra, loira, alta, afeminada, com pão quentinho, margarina feliz, grama verdinha, carrão na garagem? 
Gonorréia?

Eu posso ver no futuro, quando a química e a biologia já vão ter resolvido os problemas tecnológicos delas, e você vai no mercado pra comprar não roupas, mas uma aparência e lembranças novas, que vai ter todas as variabilidades possíveis de homens-bonzinhos, dessa idéia hemorróida. Que mercado que o que. Você baixa uma pílula sinergética que vão chamar de margarina feliz direto da internet...Pensando bem, não vai mais ter internet, você fará um download direto através do seu corpo hologrâmico. Que é aquela estrutura química que entra onde os antigos chamavam de internet.
O inconsciente coletivo, vai ser a estatística média sobre todas as pílulas tomadas por todas as pessoas...

Eventualmente o homem-bonzinho (o do presente) acaba com alguns problemas: ele se droga, pra esquecer a vida, que é insuportável. Qual era o problema? O problema, era não ter problemas? Não, o problema era só a insuportabilidade que o homem-bonzinho sentia.

O engraçado pra não dizer o trágico é 'a gente dando o máximo de si' pra ser igual ao homem-bonzinho, pra chegar o mais perto que a gente pode dele, e ele querendo sair de si. Quer sair de si nada, ele só não aguenta a vida, mas sair de si é um exagero já. É porque todo mundo quer ser o homem-bonzinho, e o homem-bonzinho quer ser ele mesmo. Todo mundo quer parecer o homem-bonzinho, e o homem-bonzinho quer parecer ele mesmo.

O fato é que no "inconsciente coletivo" (se um fantasma desses existe, e ele existe, vide previsão futura da média estatística sobre as pílulas), o homem-bonzinho não sofre! (Isso se trata com muito Mozart, com muita Mitsuko Uchida fazendo caretas de dor de estômago enquanto arranca o Mozart do teclado no concerto 9). Ele não sofre, e nós sofremos, porque estamos cá um pouquinho aquém dele, e oras sempre estaremos.

Daí quando nós os malvadinhos damos o grande golpe: a desoberta ainda genial de que toda a tristeza de nossa vida é estar aquém dos bonzinhos! Veja-se o drama!

Claro, riquíssima a descoberta tem o seu tratamento: vamos parar com esta história de distâncias e desejar o desejo de agora, vamos lutar com todas as nossas forças internas por desejar a outra coisa.

E não é uma coisa engraçada esta? Nós não só queremos controlar tudo em nossa vida, mas eminentemente queremos controlar como vai ser o nosso desejo de felicidade, o nosso desejo de satisfação, e mais importante o nosso desejo de desejar. Não é engraçado que não nos basta apenas a gente querer alguma coisa, mas também querer querer?

Nós queremos querer, e violentamente mais, depois de descobrir. Ué se a gente quiser querer a coisa certa (aquela que sempre teremos é a coisa certa), eis tudo! Temos a solução pra nossos problemas! Nos resolvemos! Hay problemas? Los resolvemos!

O paradoxo dialético da ponta é não aceitar coisa alguma e nem querer mudar coisa nenhuma. Da ponta: ponta onde nos equilibramos.

É assim o nosso inconsciente coletivo. Todo cagado. E muito conscientemente ele sabe que sua função é estar todo cagado.